A relação educativa e a organicidade do real: um confronto entre Paulo Freire e Giovanni Gentile

Publicado em “Educação e Sociedade”, vol. 42, 2021 – Seção comemorativa – Paulo Freire 100 anos.

Introdução

A intenção desta pequena contribuição é sugerir linhas de estudo sobre o pensamento filosófico subjacente a duas importantes teorias e práticas pedagógicas, pois o ponto de partida é semelhante, mas os resultados são muito diferentes. A sugestão de pesquisa é sobre a influência que o idealismo hegeliano, com sua perspectiva dialética (e dialógica), teve sobre o conceito de relação educacional de dois grandes pedagogos do século XX, o brasileiro Paulo Freire (1921-1997) e o italiano Giovanni Gentile (1875-1944).

As razões para este interesse são variadas. A ideia de uma educação que vá além da pura e simples extensão do conhecimento, ou seja, de uma educação mecânica e transmissiva, tem sido uma preocupação dos pedagogos desde o século XIX, quando o desenvolvimento industrial e as necessidades de modernização social e econômica tornaram um sistema educacional rápido, eficaz e eficiente uma prioridade. A atenção às ciências exatas, como biologia, química e matemática, bem como às ciências humanas, psicologia e sociologia, levou a uma visão revolucionária das práticas pedagógicas, em busca de uma formação global da pessoa e do cidadão. Mas o debate sobre a direção que a pedagogia deveria tomar entre os dois séculos foi logo dividido entre duas grandes facções, uma das quais pretendia superar a velha ideia de uma escola elitista e religiosa por meio da implementação de estudos científicos; a outra, para resgatar a perspectiva humanística dos estudos, para formar a “pessoa” e não apenas o “membro da sociedade”.

As posições teóricas dessas facções são mais complexas do que pode parecer à primeira vista: entre os proponentes das ciências, a lógica do positivismo visava libertar homens e mulheres de uma visão mágica e acrítica do mundo, dando-lhes as ferramentas culturais e conceituais para viverem conscientemente em uma sociedade moderna; mas ao mesmo tempo a modernização da escola deveria que passar por uma revisão eficientista. Para os proponentes das humanidades, o desenvolvimento da pessoa devia privilegiar o crescimento interior, também do ponto de vista espiritual, para poder dar sentido à própria vida num mundo cada vez mais mecânico, onde o risco de se transformar em engrenagens está sempre presente; mas, ao mesmo tempo, subordinar as ciências às humanidades arriscava-se a dar lugar a uma concepção muitas vezes religiosa e conservadora do lugar da humanidade no universo (concepção antimoderna).

Apesar da grande síntese implementada entre as duas posições teóricas pelo movimento internacional da Escola Nova (do qual pelo menos podemos lembrar John Dewey, Maria Montessori, Anísio Teixera e Fernando de Azevedo), pela liberação da criatividade da autonomia individual para a democratização coletiva da sociedade, o embate continuou sobre o papel da escola pública como um subsistema do sistema sociopolítico geral. À modernização da escola pública em um sentido progressista, grupos religiosos responderam com a fundação de escolas privadas conservadoras, como se pode verificar na situação do Brasil entre 1879 e 1932: da reforma escolar de Carlos Leôncio de Carvalho à assinatura do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, a luta pela hegemonia na educação brasileira opôs a pedagogia humanística e filosófica à pedagogia científica, na qual os conservadores acusavam os progressistas de querer transformar as pessoas em partes de máquinas, por meio de uma ciência dedicada ao ateísmo materialista e ao socialismo; por outro lado, os progressistas acusavam os conservadores de querer humilhar o ensino público com escolas particulares dominadas pela lógica do mercado, e não pela preocupação de difundir a cultura.

Nas experiências, muito distintas no tempo e no espaço, de Paulo Freire e Giovanni Gentile, podemos encontrar um eco dessas complexas lutas, onde elementos de modernidade e antimodernidade misturam-se, trocam-se e transformam-se em concepções de educação e de humanidade que, embora partindo de bases comuns, alcançam resultados extremamente diversos por caminhos transversais. Como tentaremos mostrar nesta contribuição, a atenção à pessoa e sua formação social e espiritual leva Freire a unir a espiritualidade cristã à política socialista, a fim de libertar o ser humano de uma visão mágica e acrítica do mundo, sem no entanto perder sua dimensão emocional íntima; e leva Gentile a ver a possibilidade de libertação da pessoa pela participação em uma sociedade, na qual cada indivíduo pode viver sua vida na consciência de fazer parte de um contexto orgânico maior que a soma de suas partes: o Estado ético, do qual o regime fascista italiano é, para ele, a realização perfeita na história.

A partir de algumas obras fundamentais dos pedagogos, veremos como o conceito de relação educacional pode ser interpretado de forma dialética e dialógica, interativa e orgânica, ao mesmo tempo que se coloca em weltanschauung com um signo muitas vezes oposto.

Crítica da educação extensionista

Em sua obra Extensão ou comunicação?, Freire (1969) aprofunda seu exame crítico dos diversos aspectos da educação extensionista e da comunicação, insistindo na razão fundamental e indispensável da educação dialógica: problematizar o diálogo diminui a distância entre a expressão significativa do agrônomo e a percepção de significado pelos camponeses.

A essência da comunicação é, portanto, a interação entre sujeitos pensantes em torno do objeto de pensamento. Podemos dizer que, na diferença entre extensão e comunicação no campo educacional, fica bem claro que a escolha pela comunicação é, com efeito, uma escolha pela educação em si, porque a educação não é tal, se não for comunicativa:

Nem aos camponeses, nem a ninguém, se persuade ou se submete à fôrça mítica da propaganda, quando se tem uma opção libertadora. Neste caso, aos homens se lhes problematiza sua situação concreta, objetiva, real, para que, captando-a crìticamente, atuem também crìticamente, sôbre ela. Este, sim, é o trabalho autêntico do agrônomo como educador, do agrônomo como um especialista, que atua com outros homens sôbre a realidade que os mediatiza. Não lhe cabe portanto, de uma perspectiva realmente humanista, estender suas técnicas, entregá-las, prescrevê-las; não lhe cabe persuadir nem fazer dos camponeses o papel em branco para sua propaganda. Como educador, se recusa a “domesticação” dos homens, sua tarefa corresponde ao conceito de comunicação, não ao de extensão. (FREIRE, 1969, p. 23)

Poderíamos até perguntar se Freire aceitaria a ideia de que, graças a seus esforços interpretativos, a expressão «educação dialógica» se tornou pleonástica; provavelmente não, porque um código estilístico que une toda a obra de Freire é a constante repetição de conceitos e expressões, para não deixar escapar nada, nem mesmo o menor detalhe de seu pensamento, reiterando incansavelmente suas ideias para que qualquer um, mesmo os menos preparados de seus interlocutores, pode ter uma imagem clara e completa do que ele pretende comunicar.

Portanto, não pode ser pleonástico repetir que a verdadeira educação é dialógica, que o diálogo é educativo e que a comunicação é o fundamento da educação correta, porque a força de persuasão com que se propaga a ideia clássica da educação extensionista, hierárquica e autoritária, é tal que torna muito difícil romper um pensamento consolidado e introjetado, como a ideologia dominante da sociedade em relação à educação.

Essa perspectiva de introjeção lembra indiretamente a forma mais hierárquica, autoritária, estruturada e sólida de educação de massa: a educação em regimes ditatoriais. Freire tem sob seus olhos as ditaduras militares que entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70 se espalharam pela América Latina e sufocaram a sociedade civil à força da repressão e da censura. (MARIANO, 2003)

Embora desprovidas daquela inspiração megalomaníaca típica dos totalitarismos europeus, essas ditaduras regimentam a população, “curam” sua formação por meio da Educação Moral e Cívica, doutrinação funcional para os fins do regime, reprimem sua criatividade fora de suas aplicações técnicas e, no caso do Brasil, até reajustam o Método Freire no MOBRAL, para a alfabetização em cursos específicos de erradicação do analfabetismo, expurgando-o de qualquer estímulo à conscientização, com o resultado de empobrecer o método e rende-lo ineficaz (ARRUDA ARANHA, 2010, p. 314-319). Tudo isso apenas reforça a crítica de Freire à educação tradicional, que nas ditaduras assume conotações burocráticas opressoras e, nas realidades caraterizadas por uma invasão cultural extensionista, também manipuladoras:

A manipulação, jamais a organização dos indivíduos pertencentes à cultura invadida é outra característica básica da teoria antidialógica da ação. Como forma de dirigismo, que explora o emocional dos indivíduos, a manipulação inculca nêles aquela ilusão de atuar ou de que atuam na atuação de seus manipuladores, da qual falamos antes. Estimulando a massificação, a manipulação contradiz, frontalmente, a afirmação do homem como sujeito, que só pode ser na medida em que, engajando-se na ação transformadora da realidade, opta e decide. Na verdade, manipulação e conquista, expressões da invasão cultural e, ao mesmo tempo, instrumentos para mantê-la, não são caminhos de libertação. São caminhos de “domesticação”. O humanismo verdadeiro não pode aceitá-las em nome de coisa alguma, na medida em que êle se encontra a serviço do homem concreto. Daí que, para êste humanismo, não haja outro caminho senão a dialogicidade. Para ser autêntico só pode ser dialógico. (FREIRE, 1969, p. 50-51)

No entanto, a radicalidade das suas propostas pedagógicas não se limita à crítica à escola em estado autoritário. Vai mais longe, diz respeito a uma concepção de educação que acaba por ser pólos opostos, a educação ministrada nas escolas e, por fim, as próprias escolas, como instituição. Por isso, é interessante descobrir que as elaborações teóricas de Freire apresentam semelhanças com a concepção filosófica da pedagogia de Giovanni Gentile, implementador da Reforma escolar durante o fascismo, muito apreciada por Mussolini. A questão é complexa e merece um maior estudo filosófico e semântico; no entanto, podemos pelo menos relembrar alguns pontos fundamentais da concepção gentiliana de pedagogia, para mostrar os possíveis pontos de contato e as diferenças.

Organicidade da educação

O ponto fundamental para Gentile é a ideia da unidade da cultura (NEGRI, 1997, p. 105-128). Cada disciplina, cada ciência, faz parte de um conhecimento orgânico, cuja expressão máxima é a filosofia, que engloba tudo no sentido espiritual. Não existe ciência que não seja filosófica, assim como não existe filosofia que não seja espiritual, no sentido idealista hegeliano do termo.

Uma visão, a do atualismo, que privilegia a identidade e a unidade sobre as diferenças e distinções, refletindo no nível histórico a unidade política italiana conseguida no Risorgimento e consolidada no Estado fascista. A pedagogia, portanto, não pode ser considerada uma ciência em si mesma, no sentido positivista das ciências exatas. A pedagogia é uma ciência filosófica: seu caráter teórico e prático diz respeito à educação em geral, ou seja, à formação espiritual e humana do indivíduo, não se reduz à teoria e à prática da educação.

Gentile é um defensor da construção de uma relação escolar entre professor e aluno que supere a oposição entre o professor e o objeto que conhece, para chegar a um encontro dialético entre dois sujeitos. Em A reforma da educação, Gentile (1955) critica o realismo pedagógico positivista, uma vez que fragmenta a educação geral em muitas “educações particulares”, quebrando a conexão que existe entre eles como parte de uma educação integral. O conhecimento dividido torna os indivíduos eruditos, mas não os forma como homens em sua totalidade. Escolas onde esta é uma prática normal instruem, mas não educam, porque um conhecimento parcial, separado dos outros saberes aos quais está relacionado, é um conhecimento abstrato, imóvel, morto. A educação não se limita à transmissão de informações, ela se baseia na formação no sentido da paideia, do cuidado e da nutrição, do crescimento espiritual e ético. Em suma, há uma identidade entre educação e formação autônoma do espírito, para a qual a ciência positivista da educação, desvinculada de sua dimensão filosófica e espiritual, renuncia ao dinamismo dialético da totalidade, paralisa o sujeito que conhece, o obriga à imobilidade, transformando-o em um objeto, limitado e passivo, da ação educativa.

A inspiração idealista totalizante de Gentile empurra a educação na direção oposta, em direção ao dinamismo do desenvolvimento perene do espírito, chegando a se antecipar às formulações modernas da educação de adultos:

Uma das provas desse caráter popular do conceito de pedagogia está no fato de que ainda, quando se fala em pedagogia, se pensa em paides e se fala em uma idade própria de educação. Mas um homem na casa dos cinquenta não tem mais nada a aprender? Ele realmente não aprende algo todos os dias? E como ou por que esse aprendizado seria subtraído do conceito de fato educacional? O espírito está sempre se desenvolvendo até que deixa de existir. Seu desenvolvimento será maior ou menor, mais rápido ou mais lento: mas um desenvolvimento sempre o terá; e enquanto houver desenvolvimento, a ciência da educação deve dizer que ainda há educação. (GENTILE, 1988, p. 37-38, tradução nossa)

A reflexão sobre a pedagogia é prejudicada por um preconceito cronológico, para o qual a pedagogia se reduz apenas à pedologia (GENTILE, 1954), um estudo sobre a criança que porém não é real, mas sim uma abstração, elevada a objeto e não a sujeito de educação.

Qualquer distinção cronológica, empírica, que não tenha em mente a unidade do espírito própria de cada momento da vida espiritual, servirá simplesmente para separar a criança do homem; para tornar ambos os termos irredutíveis à unidade, mutuamente incompreensíveis. A criança, concebida como uma sucessão de estados psíquicos que, somados, conduzem ao estado de homem, é pura abstração, puro mecanismo natural, que aspirará em vão a uma síntese espiritual. Não é espírito, e não tem nada a ver com o homem, se quisermos considerar o homem como uma realidade espiritual. (GENTILE, 1969, p. 17-18, tradução nossa)

De sua perspectiva orgânica e holística da cultura e, portanto, da educação, Gentile então critica o dualismo na escola, a distinção, ou melhor, a antítese insolúvel, entre professor e aluno, entre educadora e educanda: este dualismo baseia-se em duas identidades abstratas, fixas em seus papéis, nas quais o professor-tutor tem a posse de uma ciência exata, isto é, pronta e indiscutível, para ser transmitida a um aluno-receptor reduzido a um contêiner de informações definidas e imutáveis, o conhecimento fragmentado e petrificado. Gentile coloca como resolução dialética desse dualismo, no quadro da pedagogia como ciência filosófica, o encontro da mente que ensina e da mente que aprende na unidade da mente que conhece (GENTILE, 1988).

Essa unidade dialética de sujeitos em torno do conhecimento é uma revolução filosófica contra a pedagogia reduzida à técnica, contra a arte de educar, significando por “arte” a ciência prática da ação:

Não há um saber que ensine a arte da escolaridade; se fazer escola significa realmente fazê-la, em certos dias, em certas horas, gradualmente, a certos alunos, sempre novos, sempre com uma alma nova, em circunstâncias sempre diferentes, sobre problemas que nunca se repetem. Também a escola, como tudo, é, em cada momento em que é considerada, um ato absoluto, sem precedentes e sem consequências; um ato em que tudo o que aprendemos não é nada comparado com o que ainda não conhecemos. E ai do professor que não sabe proceder senão nas questões dos preceitos! A vida é criação eterna […]. O professor, que é professor, não se repete: ele se renova constantemente no espírito do aluno. Vive, e por isso se torna, sempre diferente […]. Docendo discitur. (GENTILE, 1954, p. 123-124, 159, tradução nossa)

Vale a pena, neste ponto, observar algumas características da escola fascista e em particular da Reforma Escolástica de 1923, para entender como as ideias pedagógicas de Gentile resultaram em uma estrutura rígida, hierárquica e funcional para a distinção de classes no Estado ético corporativo.

A escola no Estado ético fascista

Gentile, até 1922, foi politicamente um expoente do liberalismo europeu clássico, que na Itália moldou as políticas de todos os governos desde a Unificação, em 1861. Sua importante trajetória acadêmica, nos campos da filosofia e da educação, fez dele um intelectual destacado nos debates culturais da época, nos quais defendeu a necessidade de fortalecer o papel do Estado na sociedade e conter a desintegração decorrente da corrupção, frouxidão e burocracia excessiva. Somente com o advento de Mussolini na cena pública é que ele se interessou pelo movimento fascista, vendo em suas propostas políticas a realização do liberalismo patriótico que havia caracterizado o Risorgimento italiano. Assim, ingressou no primeiro governo fascista e foi nomeado Ministro da Educação Pública em 1923. A conseqüente reforma escolar, conhecida precisamente como a Reforma Gentile e desenvolvida pelo filósofo em conjunto com o pedagogo Giuseppe Lombardo Radice, é o primeiro exemplo da formação de uma escola orgânica marcada pelo serviço de um regime autoritário que, em pouco tempo, se torna abertamente ditatorial.

Com essa reforma, a escola é reorganizada de forma sistemática, por meio de uma série de atos normativos que definem ciclos, séries e pré-requisitos. O ensino fundamental tem um ciclo único e igual para todos, a fim de padronizar a cultura básica para todas as classes sociais. As escolas são diferenciadas entre meninos e meninas: nestas últimas acrescenta-se um curso específico de “empregos femininos”, ou seja, economia doméstica. Nos anos finais, são organizados cursos complementares de formação profissional. Uma novidade importante é a introdução do ensino da religião católica, a fim de proporcionar ao povo uma concepção abrangente do mundo e da pátria, em um nível menos complexo que a filosofia; o ensino é confiado a um padre e não há alternativas a esta atividade, nem os programas se estendem ao estudo de outras religiões, visto que o catolicismo é a “religião oficial”. Outras disciplinas são desenho, canto, ginástica, geografia, educação para a saúde e leituras sobre vida familiar e social; com o decorrer dos anos letivos, essas disciplinas vão ganhando características que visam aumentar a qualificação técnica dos alunos, com experiências práticas e manuais.

A partir do ingresso no ensino superior, a componente especialista torna-se fundamental para a formação da sociedade. A escolha do caminho a seguir é de fato o que distingue as possibilidades de acesso aos níveis da sociedade: os cursos literário-humanísticos, com a instituição do ginásio, dão acesso ao liceo (ensino médio-superior, dividido em endereço clássico-humanístico e endereço científico), único caminho preparatório para a universidade, que é o campo de treinamento da classe dominante do país. A diferença entre os dois endereços do liceo também é um pré-requisito: quem frequenta o liceo clássico pode acessar qualquer tipo de faculdade nas universidades, enquanto quem frequenta o liceo científico não tem acesso às faculdades de direito e de literatura e filosofia. Para as mulheres, é instituído o liceo feminino, com seleção de disciplinas especializadas, mas sem acesso à universidade. Os cursos profissionalizantes, por outro lado, são adequados para a formação de classes subordinadas; dividem-se em institutos técnicos (para indústria, comércio, transporte), mestrado (para a formação de professores do ensino básico) e escolas de formação profissional, após às quais não é possível inscrever-se em nenhum outro curso. Os ciclos escolares terminam com os exames estaduais.

Apesar de ser definida pelo próprio Mussolini como «a mais fascista das reformas», o problema sentido mesmo pelo regime é a excessiva rigidez do sistema seletivo, que se choca com a necessidade de modernização e mobilização de massa. O problema com a visão de Gentile é seu forte conservadorismo, que a torna refratária a mudanças. Por isso, ao longo dos anos a ditadura vai modificando vários aspectos da escola, dando início a uma verdadeira fascistização, no sentido organizacional e ideológico, até à Reforma de 1939, desenvolvida por Giuseppe Bottai, onde a maior mobilidade social é acompanhada por um outro tipo de rigidez institucional, que visa fundir completamente a escola e a vida profissional com as diretrizes do Estado ético e corporativo, a fim de alcançar uma visão totalitária mais avançada, dinâmica e dominante do que a de Gentile (CAMBI, 2005, p. 37-44).

Afinidades, transformações e divergências

A afinidade teórica com vários temas centrais em Freire é evidente. O pedagogo brasileiro assume a tendência organicista da dialética hegeliana, em particular entre servo e senhor (1), filtrando-a por meio de Marx e reconciliando-a com elementos profundamente espirituais e idealistas: Freire é cristão e sua pedagogia nasce do mesmo húmus cultural da Teologia da Libertação, é alimentado pelo pensamento cristão personalista de Mournier e Maritain, coloca o indivíduo no centro, mas ao mesmo tempo o considera como parte da Criação, do mundo que o cerca, o penetra, o transforma, no momento em que ele age para transformar o mundo por sua vez.

A visão orgânica do mundo e do ser humano tem como complemento necessário a educação total, inclusiva e dialógica, na qual os verdadeiros educadores e educadoras conhecem o universo dos educandos e educandas, e se colocam no mesmo nível deles e delas para discutir os conteúdos da educação. E tal educação – ainda mais no caso da extensão para a reforma agrária – é permanente por sua própria natureza, dirigida a todas as pessoas de todas as idades, como os camponeses neste caso específico.

Conhecer, na dimensão humana, que aqui nos interessa, qualquer que seja o nível em que se dê, não é o ato através do qual um sujeito, transformado em objeto, recebe, dócil e passivamente, os conteúdos que outro lhe dá ou impõe. O conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sôbre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e em reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sôbre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o “como” de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato. Conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos. E é como sujeito e sòmente enquanto sujeito, que o homem pode realmente conhecer. Por isto mesmo é que, no processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquêle que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isto mesmo, reinventá-lo; aquêle que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações existenciais concretas. Pelo contrário, aquele que é “enchido” por outro de conteúdos cuja inteligência não percebe; de conteúdos que contradizem a forma própria de estar em seu mundo, sem que seja desafiado, não aprende. (FREIRE, 1969, p. 28-29)

A alfabetização de adultos, outro grande tema da pedagogia dos oprimidos, proporciona o conhecimento do universo do vocabulário dos alunos, ou melhor, a descoberta desse complexo lexical que forma a consciência cotidiana, ligada às experiências reais e às mais típicas situações da vida de alunas e alunos. Freire considera essencial essa fase do conhecimento, que abre as portas ao educador para o diálogo, para que o conhecimento seja compreendido para além da simples lição. Ele, ou ela, deve entrar na linguagem do aluno para torná-lo plenamente consciente da linguagem escrita a ser aprendida, para envolvê-lo na formação concreta das palavras não apenas em um nível alfabético e visual, mas também no sentido real e efetivo dos termos em questão, que têm sentido porque correspondem à concretude da existência. O educador, a educadora, não podem deixar de conhecer o mundo de alunos e alunas, não podem evitar entrar nele, abrindo-se a ele e se deixar transformar por tal interação, se realmente desejam mudar a vida dos alunos através do conhecimento.

É claro que, ao lado de semelhanças nas implicações relacionais, éticas e humanísticas dessas duas visões pedagógicas orgânicas, existem tantas diferenças, profundas para os resultados que alcançam. O espanto que a singular proximidade de temas e ideias entre Freire e Gentile pode causar se deve ao óbvio abismo que separa o radicalismo libertário do pedagogo brasileiro da sólida estrutura estatista do filósofo italiano: Freire raramente fala de “escola” no sentido comum e define os grupos de estudo que seguem seu método como “círculos de cultura”; critica as instituições de ensino tradicionais pela “neutralidade” que afirmam conferir à educação, ou pela tendência genérica de abrandar a curiosidade dos alunos no processo de aprendizagem, abordando ideias ainda mais radicais, como a desescolarização (ILLICH, 1972). Gentile, por sua vez, vê na escola ordeira e disciplinada a realização do Estado, e no fascismo a força geradora necessária para implementar reformas há muito tempo esperadas, promessas e nunca realizadas pela fracassada democracia liberal italiana entre os séculos XIX e XX.

O Estado é responsável pela educação dos cidadãos, e a liberdade de ensino, fundamental para o processo de formação humana, ainda está intimamente ligada aos deveres do Estado. Nesse sentido, o organicismo idealista de Gentile vai muito além, vendo no Estado uma personificação da ética e do espírito, um momento fundamental de autoconsciência coletiva:

Na escola o Estado se realiza e não sabemos conceber a liberdade senão nas tão discutidas relações entre Estado e escola. A escola é livre porque, de outra forma, não é escola, sendo a escola o desenvolvimento de uma vida espiritual e não havendo vida espiritual senão em liberdade. Mas a necessidade objetiva de liberdade está no Estado. E, portanto, a escola está no Estado, seja diretamente mantida por ele, seja mantida por outras entidades ou por particulares; sendo também órgãos indiretos do Estado as entidades e os particulares, reconhecidos pela lei e contidos no exercício da sua atividade, dentro das regras fixadas pelas mesmas leis, ao qual este último, para o melhor cumprimento dos seus fins, compromete e delega parte de sua atividade. E quanto mais está ciente dessa relação íntima, mais zela pelas escolas que não são suas, mas também suas; e assegurar que contribuam para o mesmo trabalho que explica no campo escolar. Mas, portanto, não precisa de comprimir a sua liberdade: pelo contrário, cabe-lhe e convém reconhecê-la e garanti-la, como condição essencial da prosperidade. (GENTILE, 1989, p. 147-148, tradução nossa)

Temos, portanto, dois pensadores que assumiram uma atitude revolucionária em relação à pedagogia, à educação em si, cada um em seu tempo e contexto. Partindo de uma cultura idealista, buscaram um sentido e uma ordem coerente no caos das relações sociais; chegaram a resultados muito diversos, conclusões radicais de uma forma ou de outra, mas ambos reconheceram o valor e a dignidade das pessoas e, ao mesmo tempo, o lugar que ocupam no mundo, na realidade concreta como sujeitos igualmente concretos, transformadoras e atuadoras.

De um lado, a educação dialógica, de outro, a escola estruturada na ordem e na disciplina, mas uma visão compartilhada da formação humana como crescimento total e permanente. Ambos há muito foram esquecidos, talvez cristalizados em ícones da cultura (2), para serem citados pelo conhecimento acadêmico; ambos acabaram sendo puramente transmitidos com suas próprias idéias, na pura extensão do mestre que tudo sabe ao aluno que deve aprender tudo.

Mas assim o cerne de suas teorias, o dinamismo fundamental que move o mundo e a vida da humanidade, está sendo mal interpretado. E desse dinamismo, Extensão ou comunicação? oferece um exemplo na opção pelo diálogo, pelo conhecimento mútuo de educadores e educandos, para criar um jogo ativo de crescimento mútuo, que na atualidade se transforme no encontro de povos inteiros, para evitar que se transforme em confronto, fechamento e colapso na escuridão da ignorância e do medo.

Conclusão

O significado dessa operação comparativa é reconhecer como a semelhança do background teórico e filosófico entre pedagogos cuja perspectiva sobre a educação é, ou parece ser, extremamente divergente, é de fato ainda uma questão atual. Todos nós, como educadores e educadores, devemos ser capazes de voltar às nossas convicções, às nossas ideias, às nossas perspectivas de ação cultural, para podermos perguntar-nos que rumo estamos a tomar na nossa vida profissional. Freire e Gentile viveram diferentes momentos históricos, em diferentes partes do mundo, experimentando modelos e práticas educacionais vinculadas aos contextos em que efetivamente atuaram. No entanto, partiram de um fato comum: a educação não é uma simples, pura transmissão de saberes, mas sim uma construção dialógica, em que a relação entre professor e aluno é a culminação dialética (no sentido hegeliano) da síntese do conhecimento. Ambos, o educador e o aprendiz, são protagonistas dessa construção dialógica, enquanto o objeto é sempre a informação, os dados, e nunca o ser humano. Entre as diferenças, porém, está também a ideia gentiliana de que, na relação entre professor e aluno, o primeiro é sempre sujeito a possuir um saber superior, o que na perspectiva de Freire remete àquela prática extensionista em que, ao entrar em contato direto e aberto com o agricultor, é o agrônomo que sempre mantém uma posição de sujeito superior, a partir da qual “rebaixa” o conhecimento para aqueles que ocupam a posição de sujeito inferior. No caso de Gentile, então, a carga inicial libertadora de seu pensamento deu lugar a uma concepção mais conservadora do idealismo hegeliano, levando à teoria de uma “filosofia do fascismo” que vê na ditadura italiana uma realização histórica do movimento do Espírito. Essa perspectiva deve, é claro, ser enquadrada no contexto histórico, político e social da Itália nas décadas de 1920 e 1930; da mesma forma, a perspectiva freiriana, radical e libertadora, deve ser enquadrada no período do desenvolvimentismo, época dos golpes militares e lutas anticoloniais, entre os anos 1960 e 1990, para ser bem compreendida. Nós, como educadores, em que período histórico vivemos? Nossas idéias, nossas lutas, nossos compromissos de trabalho, nossas situações de vida, para onde estão nos levando? Retomar a bússola para nos orientar ainda é necessário hoje, talvez mais do que antes, numa época em que o progresso tecnológico cada vez mais acelerado corre o risco de nos perdermos no labirinto de sociedades cada vez mais complexas e descontroladas. O exemplo comparativo entre Gentile e Freire pode fornecer elementos para reflexão sobre o caminho a ser percorrido na ação cultural dos educadores e das educadoras de hoje e de amanhã.

Notas

(1) Freire a traduz, em seu contexto histórico-social, na relação entre o opressor e o oprimido, concluindo, como Hegel com o servo, que o momento da autoconsciência está no oprimido, não no opressor.

(2) Em 2012, Paulo Freire foi proclamado “Patrono da educação brasileira”, um prestigioso reconhecimento por sua figura, mas não é difícil perceber que há poucos vestígios de sua visão pedagógica nas atuais diretrizes da pedagogia brasileira; e que esses poucos estão constantemente sob ataque político.

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